domingo, 26 de abril de 2009

Guerra

Congelado no tempo, eu via o vaso flutuando no espaço acima da nossa cama desfeita. O vaso de flores que ficava na mesinha ao lado direito da cama. O lado dela. As flores eram vermelhas, como um grito de raiva, e incrivelmente não voaram para fora, e nem a água, durante o vôo em minha direção. Permaneciam intactas, intocadas, como se não quisessem tomar partido no conflito. Elas vinham, porém, em velocidade alarmante ao encontro de meu rosto. Congelado no tempo, eu ouvia o ódio ressoar pelo berro dela. Não sabia direito o que ela dizia, mas o ódio me era bem claro. As vezes quando brigávamos ela misturava o castelhano com português, me deixando ao mesmo tempo enraivecido e excitado. Eu não entendia uma palavra sequer, mas a força do que ela queria dizer era incontestável. Nessa manhã, nem irritar eu consegui, ela estava em seu mais belo e sensual, mulher enfuriada, furacão desperto. Eu já imaginava as marcas de unha pelas minhas costas e peito. Eu contorci meu corpo ao redor do vaso voador sem tirar meus olhos dela. O impacto foi arrepiante. Às minhas costas a parede tremeu com o explodir da porcelana, o efeito sonoro agudo e nervoso. Em meio ao gritar, os olhos dela apertaram. O fato de ela ter errado a mira a enfurecia mais. Seus cabelos escuros e lisos pareciam voar em lentidão, através da minha lente artística, como ondas castanhas me chamando com encanto. Agora era minha vez, tentei lembrar da fala. Eu conhecia essa cena de trás pra frente, já me era automática, mas eu estava distraído com a beleza exótica dela e as palavras me fugiam. Eu voltei ao tempo-real, à velocidade dela. Tudo acelerou ao meu redor e eu fui a ela com o braço erguido, surpreso com minha própria força e braveza. Erguendo a minha voz grossa acima do volume fino dela, adicionei meus berros ao escândalo que os vizinhos deviam estar tentando ignorar, chocados. A insultei, fui perverso, xinguei como só marinheiros, insinuei absurdos sobre sua fidelidade e apertei todos os botões necessários para atiçá-la os cabelos no alto da nuca. Os grandes olhos de espanhola se acenderam como faróis selvagens na noite. Os dentes se trancaram como se batesse uma porta. Eu sabia que não havia tocado em nenhuma ferida, não a ameaçado de forma alguma, apenas declarado guerra de orgulhos. Desafiado abertamente. Ela girou o braço ao redor de si como uma alavanca, a palma da mão vindo firme e certeira ao meu rosto. Eu agarrei no ar seu braço delicado (agora transformado em arma letal). Segurei o pulso ao ponto de causar dor. O outro punho me atingiu cheio nas costelas e eu perdi a respiração e o equilíbrio. De meu interior o instinto animal emergiu como um incêndio impiedoso e em segundos eu a havia erguido do chão e lançado por cima da cama à parede do outro lado do quarto, com o maior, mais detalhoso cuidado para não a machucar mais do que necessário. Eu expunha meus dentes como uma fera e ela, em um grito climático de ataque final, correu por cima do colchão com o demônio na veia. Eu me enrijeci como um tronco de árvore para confrontá-la. Colidimos. Dois corpos humanos em guerra, dirigidos pela pura emoção, feitos animais, o sangue fervendo, os músculos como veículos da paixão, nós nos jogamos na cama. Rasgamos os tecidos todos, já me ardiam nos braços arranhões frescos e vermelhos. No estupor selvagem derrubamos todos os móveis e ornamentos do quarto, tudo foi ao chão e nós juntos. O furacão havia batido e nós nos batemos como a destruição. Deixamos os dentes morder, os olhos pulsarem e finalmente os sexos se encontrarem. Devastadoramente, da guerra, haviamos transcendido ao amor. Nos destruimos até não sobrar nada. Apenas os corpos mortos no chão, a fumaça no campo de batalha, os trapos e o sangue. Fechamos os olhos, enfim, e nos permitimos partir desse mundo em plenitude.