domingo, 19 de outubro de 2008

Polpa

"No amanhecer as ruas da cidade se enchem de papéis brancos e panfletos. Cartas de amor e documentos que se dão por perdidos, podiam ser as páginas voadoras da autobiografia não-publicada de um gari. Peguei pra ler uma dessas páginas, que se rebatia pelo ar em minha direção. Era uma multa de trânsito. O trânsito está cheio de multas que se dá por perdidas.
Li, também, as páginas encarceradas de um livro didático, que ditava: Os pseudofrutos são estruturas suculentas que contém reservas nutritivas, mas que não se desenvolvem a partir de um ovário. Foi então que descobri, como se descobre o próprio nome, que eu era, nas selvas humanas, um pseudofruto."
(extraído de: relatos de um pseudofruto)

terça-feira, 14 de outubro de 2008

eu-insone

O que seria Duas Semanas em Abril e se tornou o Ensaio Sobre a Insônia:

I. Toda obra é prima. Trinta e um, vinte e cinco, treze.
A procura por um sentido na vida é totalmente ilógica. É absurda e vital. A vida é o sentido da vida. Pêndulos, satélites, espirais. Luta de classes. Torta.
II. Há vida na morte. A alma é elástica.
Há um pedaço de mim que vagueia pelo sertão se chamando Assis e dormindo a sós. Todo descalço, o descaso em pessoa. Messiânico. A silueta impossível de um dos muitos visionários tortos. E eu aqui, urbano, todo vermelho acenando aos motoristas ensurdecidos. Berraria e suor, nessa cidade todos têm em comum. Uma nação de cristãos descrentes e desbocados. Vilões nos seus momentos mais íntimos. Atores da Globo. Ó meu renegado Assis, estás em minhas preces curtas. Seja tu poeira cósmica ou o fim do mundo. Seja tu um desenho ou um destino intrínsseco, independente e de olhos castanhos que me cruza na rua e me deixa pra sempre. Essa rua... é minha? Ela é minha alma recoberta com pixo? E as pessoas, fonte de minha fonte, que passam como água corrente pela minha vida dura, são o destino? A lista telefônica está cheia de respostas. De noite quando tudo se cala eu percebo que todos estão perdidos, de uma forma ou outra. Só então a calma chega, por todos os lados, e eu durmo. O sono dos justos. Vício, ofício, vício.

Sobre medo do escuro: Temo a escuridão do universo. Bilhões e bilhões de estrelas, uníssonas, perfeitas, galáxias, não conseguem aclareá-lo. No fundo o negrume prevalece e engole tudo. Não há interruptor, não há lenha para a fogueira universal. Temo a solidão do universo.

segunda-feira, 13 de outubro de 2008

Introdução à Introdução

Indelével diz com voz rouca e solitária das profundezas do oceano:
A noite cai...
Assim, vinda de lugar nenhum.
Uma escuridão paira sorrateiramente sobre a cidade.
As estrelas, a lua.
O céu brilhante.
Fecha os olhos e respira.
Sente a brisa fresca da noite, carinhosa, na sua pele.
Você pode ouvir a música?
Algumas coisas parecem só com alguma coisa, mas acabam sendo de diversas formas diferentes. A vida é assim.
Vida, Vida, Vida.
Pensei que fosse rosa
Vi em preto e branco
Mas agora eu sei que é colorida
(Mesmo em dias chuvosos)
E tudo está em como você mistura as cores.
De qualquer forma, o que me move hoje é a esperança, hoje sou toda esperança, meu nome é esperança. Assim, a última que morre, assim, difícil de se esvanecer, assim indelével.
A minha alma é nova, os meus olhos são novos e eu percebo tudo ao meu redor como um bebê que acaba de nascer e ainda se acostuma às novas sensações. Os meus olhos brilham e engolem o mundo colecionando as expressões mais intimas das pessoas. As pessoas. Elas deveriam saber o quanto são lindas e especiais e apaixonantes. Elas me fascinam.
Entre os lábios guardo sorrisos e segredos e o amor, o amor até os poros.
Fecha os olhos e respira.
Sente a brisa fresca da noite, carinhosa, na sua pele. Sente. Sinta Antes que a música pare de tocar, antes que o dia amanheça mais uma vez.

Ao que nocivo responde, todo tétrico nos espaços cinzas do jornal, com números ímpares:
Nocivo é surgir onde não se sabe e não se deve nada. Nocivo é beber do mar vermelho e sobreviver a terremotos dormindo. O mundo é nocivo em que ele é eterno. O tempo é nocivo em que ele é fugaz. Tudo é nocivo e elétrico e preenche os cantos das minhas almas como caos engarrafado. A deriva continental lenta e catastroficamente dispersa gerações de ricas culturas, povos surgem, rostos são esculpidos em pedras e lembrados por mais de quinhentos anos. A noite descende sobre os impérios e a ruína traz o esquecimento. A perda é total. Só restam escombros e macacos confusos. Morrem os macacos. O éter consome o fogo. Oceanos congelam e bactérias sobrevivem. E na mais negra e última noite da Terra a lua nasce cheia. É Outubro e a maré cheia traz animais rastejantes ao mundo. Ressurge a sociedade. Nociva é a doença de Deus, corrosiva. Com olhos nostálgicos ela assiste ao espetáculo, imparcial e paciente, se decompondo triste. Nociva é a insônia e a televisão ligada. Eu e você. Essencialmente iguais.

O retrato da sociedade está colado, em preto e branco, na porta da geladeira. Ela sorri familiarmente, tira a mão do bolso e acena. Como um parágrafo curto de introdução à introdução na última página do jornal, uma homenagem breve aos poetas insones. De curta vida fulgorosa.