domingo, 13 de setembro de 2009

Cartas e Documentos Perdidos IV

Do tempo que eu era escrevente no lugar onde eu morava, guardei algumas cartas que voltaram. Este trecho é de uma dessas, que ao destino não chegaram:

Por aqui as coisa anda
com o pé na mesma estrada
Se teu pai nunca descansa
teu irmão nunca quer nada

Mas meu peito apertado
teme a vida tua fora
Caso o vento sopre errado
junta tudo e vem se embora

Tenho feito tanta prece
vai mandando novidade
quem me dera ocê regresse
Mãe tá louca de saudade

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Cartas e Documentos Perdidos III

Este trecho foi encontrado digitado em uma máquina Hermes preta, de estilo antigo, impresso na folha e nunca terminado. Foi abandonado orfão, na calçada portuguesa da Rua Professor Aberto Braga. O aparelho achado funcional, apesar de maltratado, aparentemente descartado com as lixarias de Domingo. A página branca estava manchada de fumaça.

"Meu amor,
larguei os vícios. Larguei tudo, desacorrentei a carne. A liberdade é imensa e sinto que afogarei nela. Acho que encontrei Deus. Tudo aqui é tão branco. Você ainda habita aquela casa, com as flores amarelas na porta? Quando me recuperar passarei por lá. Às noites imagino rever tua beleza, vejo tuas feições escondidas na natureza, eternizadas. Seus olhos no horizonte, no mar. Tuas pernas nas raízes grossas. Nas rosas vermelhas teus lábios, frescos no orvalho, gordos de paixão. Cheguei deste lado com o corpo seco. Pele e ossos, e meus olhos afundados. Mas os caminhos da vida nos enchem as veias e já sinto o calor do sol. Já fortaleci as coxas para me carregarem, já deixei de rastejar.
Amor,
sei que perdoará-me perder o casamento. Espero que a festa tenha sido grandiosa, desejo aos noivos todo o amor da família íntegra, bonita. Sei que em outras ocasiões ainda poderei celebrá-los. A dor foi forte, pontiaguda, mas dissipou e o tempo fez de mim um homem orgulhoso. Nos anos que não vi passar por medo, torpor e agonia psicológica, você criou uma nova vida, linda eu imagino, cheia de bondades. Eu não desejaria diferente para ti e me acalma o coração teu futuro. Meu coração cansado, só quer o bem, acho, o desapego. Quero nutrir em meu peito uma selva, com seiva, tronco e raíz. A castanheira, o jequitibá, resistem e são fortes. Fortes como Deus. Acho que encontrei a força de Deus no meu peito."

domingo, 26 de abril de 2009

Guerra

Congelado no tempo, eu via o vaso flutuando no espaço acima da nossa cama desfeita. O vaso de flores que ficava na mesinha ao lado direito da cama. O lado dela. As flores eram vermelhas, como um grito de raiva, e incrivelmente não voaram para fora, e nem a água, durante o vôo em minha direção. Permaneciam intactas, intocadas, como se não quisessem tomar partido no conflito. Elas vinham, porém, em velocidade alarmante ao encontro de meu rosto. Congelado no tempo, eu ouvia o ódio ressoar pelo berro dela. Não sabia direito o que ela dizia, mas o ódio me era bem claro. As vezes quando brigávamos ela misturava o castelhano com português, me deixando ao mesmo tempo enraivecido e excitado. Eu não entendia uma palavra sequer, mas a força do que ela queria dizer era incontestável. Nessa manhã, nem irritar eu consegui, ela estava em seu mais belo e sensual, mulher enfuriada, furacão desperto. Eu já imaginava as marcas de unha pelas minhas costas e peito. Eu contorci meu corpo ao redor do vaso voador sem tirar meus olhos dela. O impacto foi arrepiante. Às minhas costas a parede tremeu com o explodir da porcelana, o efeito sonoro agudo e nervoso. Em meio ao gritar, os olhos dela apertaram. O fato de ela ter errado a mira a enfurecia mais. Seus cabelos escuros e lisos pareciam voar em lentidão, através da minha lente artística, como ondas castanhas me chamando com encanto. Agora era minha vez, tentei lembrar da fala. Eu conhecia essa cena de trás pra frente, já me era automática, mas eu estava distraído com a beleza exótica dela e as palavras me fugiam. Eu voltei ao tempo-real, à velocidade dela. Tudo acelerou ao meu redor e eu fui a ela com o braço erguido, surpreso com minha própria força e braveza. Erguendo a minha voz grossa acima do volume fino dela, adicionei meus berros ao escândalo que os vizinhos deviam estar tentando ignorar, chocados. A insultei, fui perverso, xinguei como só marinheiros, insinuei absurdos sobre sua fidelidade e apertei todos os botões necessários para atiçá-la os cabelos no alto da nuca. Os grandes olhos de espanhola se acenderam como faróis selvagens na noite. Os dentes se trancaram como se batesse uma porta. Eu sabia que não havia tocado em nenhuma ferida, não a ameaçado de forma alguma, apenas declarado guerra de orgulhos. Desafiado abertamente. Ela girou o braço ao redor de si como uma alavanca, a palma da mão vindo firme e certeira ao meu rosto. Eu agarrei no ar seu braço delicado (agora transformado em arma letal). Segurei o pulso ao ponto de causar dor. O outro punho me atingiu cheio nas costelas e eu perdi a respiração e o equilíbrio. De meu interior o instinto animal emergiu como um incêndio impiedoso e em segundos eu a havia erguido do chão e lançado por cima da cama à parede do outro lado do quarto, com o maior, mais detalhoso cuidado para não a machucar mais do que necessário. Eu expunha meus dentes como uma fera e ela, em um grito climático de ataque final, correu por cima do colchão com o demônio na veia. Eu me enrijeci como um tronco de árvore para confrontá-la. Colidimos. Dois corpos humanos em guerra, dirigidos pela pura emoção, feitos animais, o sangue fervendo, os músculos como veículos da paixão, nós nos jogamos na cama. Rasgamos os tecidos todos, já me ardiam nos braços arranhões frescos e vermelhos. No estupor selvagem derrubamos todos os móveis e ornamentos do quarto, tudo foi ao chão e nós juntos. O furacão havia batido e nós nos batemos como a destruição. Deixamos os dentes morder, os olhos pulsarem e finalmente os sexos se encontrarem. Devastadoramente, da guerra, haviamos transcendido ao amor. Nos destruimos até não sobrar nada. Apenas os corpos mortos no chão, a fumaça no campo de batalha, os trapos e o sangue. Fechamos os olhos, enfim, e nos permitimos partir desse mundo em plenitude.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

23 Cores Lúcidas

Este é o começo.
O começo se desdobra aqui, ensolarada manhã de domingo, com 23 cores lúcidas e todas as expectativas de Deus que sua folga seja plena. O começo já tem cinco anos ou mais, já anda com os dois pés, já ouve rock e já discute como igual com os pais. O começo já pergunta a estranhos pelas horas.
Depois dele vêm a multidão, as pessoas rosas marchando sem parar. Por avenidas, estações de trem e até janelas, vêm tremendo o solo com seus calçados de borracha, vêm com óculos escuros. São a vanguarda irresponsável da evolução, máquinas do pensamento, insatisfeitos com o sistema de recompensa na reprodução. Querem a verdade nas palavras e no movimento.
Esses que se dizem humanos, que se dizem concretos, ficam para trás. Na frente da fila, na travessia do mar, na pulsação quente, residem passivamente os fracassados. Os desatentos, desabotoados, desnivelados e tortos, esses são reais. Reais como a curva do universo, como os olhos abertos e a mortalidade. Podem ser mais ou menos humanos, mais ou menos vivos, não tem como dizer. Estão espalhados, como vigias noturnos, pelas cidades e os campos, as colinas e o asfalto. São os gatos pretos da sociedade e espreitam o mundo em silêncio curioso, antes de se lançarem com garras expostas e pupilas enormes ao íntimo das coisas, às verdades despercebidas e aos passeios emotivos do coração.
Os rostos e as línguas transformam mas a lua é eterna e imutável. Entre os atrasados e os operários, entre as castas indianas, os jovens e os fanáticos religiosos, há o brilho tenro da lua e há o intenso fogo do sol, e sempre haverá, através dos séculos. Somos lunáticos, todos, alguns mais apaixonados do que os outros. Alguns apaixonados pelas práticas sádicas, alguns pelo ofício, outros por si mesmos e assim em diante. Todos percorremos a trilha elíptica do destino carnal, entre as 16 horas crípticas do amanhecer ao anoitecer. Os insones, porém, nós abandonados por Morfeu, desfrutamos dos oito longos passos mais românticos do braço do relógio. A essência noturna, as horas dos espectros. E nada na vida compara.
A insônia permeia a consciência, fura a alma como um vácuo, e pelo furo passa o vento frio e a calma solitária do mundo. A insônia flerta com a loucura e faz retumbar os tambores do corpo. A loucura nos espreita. Os relógios andam para trás. Na perda de contato com o exterior, perde-se o contato com a realidade e os demônios se despertam como chamas vazias pelas sombras. 23 demônios coloridos, pintados com tintas grossas, cheirando a amônia e ilusão. 23 segundos entre a vida e a morte, entre nós e os espectros, entre o céu e a terra. Se a Lua caísse do céu, 23 segundos até a evacuação da alma. Lá fora uivam os lobos urbanos, ou seriam os ônibus que não param? A insônia bate 4 vezes na porta de madeira do quarto. A insônia é muda, mas como fala. Fala através das mãos inquietas, dos olhos abertos dos pobres poetas.
Quando se está perdido no tempo as estações surpreenderão com a surreal beleza. Quando sente-se o mês inteiro pesar nos últimos três dias e antes do anoitecer não cabe nem o despertar completo. Há dias em que apenas o conselho luminoso das estrelas consegue nos abrir os olhos. Enxergamos o universo inteiro e o brilho molhado das coisas e somos loucamente imersos. Quando as palavras se exaustam, quebram e perdem a razão para viver. Quando o cotidiano e a alma se anulam, o melhor a fazer é perder-se no tempo. Uma tecla preta e uma tecla branca. O calendário de 1993 na parede com uma imagem de Stephen Hawking em um fundo de galáxias e sistemas cósmicos. O calendário de 2002 em preto e branco ao lado.

sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Entorpecida

Sempre, ou quase sempre.
Quando posso, e quando não posso,
Porque gosto, talvez por não saber ser de outro jeito.
Pra não me preocupar, apenas agir,
Às vezes para fugir.
Ir de encontro com o que me assusta,
E assustar quem vem ao meu encontro.
Ser eu mesma, sendo outra pessoa.

Quando paro e penso, acho que só sou eu mesma quando entorpecida.
Quase sempre é pouco pra viver de verdade.
No torpor encontro minha realidade,
E na realidade sou ninguém.